Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado em março deste ano, mostra que 69,9% das pessoas que realizam trabalho doméstico e de cuidados remunerados no país são mulheres negras. Entre todos os trabalhadores do setor, 93,9% são mulheres e apenas 6,1% são homens. Além disso, elas são as mais afetadas pela subutilização da força de trabalho e pelo desalento, que é quando se quer trabalhar mais ou procurar emprego, mas encontra barreiras para isso.
Essa desigualdade estrutural atinge de forma direta a vida, a saúde e as possibilidades de ascensão social das trabalhadoras negras, que acumulam jornadas exaustivas, baixa remuneração e pouca valorização social. Segundo a psicóloga e psicanalista Maria Lúcia da Silva, essa sobrecarga é herança do sistema escravista brasileiro, que até hoje se reflete no lugar social destinado às mulheres negras.
“Herdado da escravização, o trabalho doméstico e de cuidado ainda hoje é exercido majoritariamente por mulheres negras, seja no ambiente doméstico privado, seja como ocupação remunerada em condições precarizadas. Essa sobrecarga afeta a saúde mental de forma estrutural, produzindo exaustão crônica, sentimentos de desvalorização, depressão e ansiedade”, explica a especialista.
Pandemia aprofundou a desigualdade
Durante a pandemia de Covid-19, no auge da crise econômica em 2021, quase 43% das mulheres negras estavam em situação de subutilização no mercado, contra 29% das mulheres brancas, segundo o Ipea. Elas também são as mais impactadas pelo desalento, muitas vezes impedidas de buscar emprego ou de ampliar a jornada por falta de oportunidades ou condições.
A violência doméstica também agrava a situação dessas trabalhadoras. “O racismo interseccionado ao machismo opera uma dupla invisibilização: são mulheres, portanto esperadas para ‘servir’; são negras, portanto consideradas fortes, resistentes, quase insensíveis. A violência doméstica expressa essa lógica colonial que retira dessas mulheres o direito à fragilidade e ao cuidado”, explica Maria Lúcia.
Educação e pobreza caminham juntas com a desigualdade
A desigualdade também aparece na educação. Mais de 50% das trabalhadoras domésticas negras não concluíram o ensino médio, contra 42,9% das não-negras. De acordo com a psicóloga, a energia dedicada ao cuidado dos outros impede que essas mulheres invistam em sua própria formação, descanso e mobilidade social.
“O trabalho doméstico, nesse sentido, não é apenas um trabalho: é uma tecnologia de reprodução das desigualdades”, avalia Maria Lúcia.
Cuidado é um direito, mas recai sobre as mesmas de sempre
O cuidado é um direito humano, essencial para todas as fases da vida e para o funcionamento da sociedade. Mas, no Brasil, ele continua invisível, sem políticas públicas adequadas e sustentado quase sempre pelo corpo e pela saúde das mulheres negras.
A secretária nacional de Combate ao Racismo da CUT, Maria Júlia Nogueira, defende que é urgente mudar essa realidade. “Recai principalmente sobre mulheres negras, que enfrentam maior precariedade, menor remuneração e sobrecarga física e emocional. Precisamos de políticas públicas, creches públicas e valorização do trabalho doméstico remunerado”, afirma.
Quem cuida de quem cuida?
Em muitas famílias, meninas mais velhas assumem a responsabilidade pelos irmãos e vizinhas cuidam de idosos ou pessoas com deficiência, ampliando ainda mais a rede informal e sobrecarregada. Para enfrentar esse cenário, Maria Lúcia defende políticas públicas reparatórias e interseccionais: mais creches e escolas públicas, programas de renda básica, investimento em saúde mental e reconhecimento do cuidado como fundamental para a justiça social.
“Mais do que assistencialismo, é preciso construir políticas de reparação que reconheçam historicamente o papel dessas mulheres na sustentação do país e garantam meios para que possam viver com dignidade, autonomia e saúde”, conclui.
Com informações da CUT Nacional.